A AVENTURA DE UM PERCURSO A SÓS…
Fazer o Caminho de Santiago era um projecto antigo, várias vezes programado mas sempre adiado por dificuldades de “agenda” entre interessados. Um dia decidi que seria uma aventura a sós e tudo se simplificou. E o que pensava ser um constrangimento – caminhar “só” comigo – não o foi: fui conhecendo e conversando com gente “nova” nesta minha caminhada que se revelou também interior.
A escolha do Caminho
Como tinha pouca experiência e ia viajar só, optei por um percurso pequeno e que me parecesse quase familiar (mesmo não o sendo). Escolhi o Caminho Português e decidi partir de Valença: começava ainda em Portugal, havia maior garantia de boa sinalização e cumpria os requisitos mínimos – mais de 100km – o que me dava direito ao Passaporte de Peregrino que dá acesso aos albergues e à Compostelana. Decidi ir no Outono fora de qualquer data de referência em Santiago de Compostela. Garantia-me, sem sobressaltos, dormida nos albergues, mas quanto ao clima os dias foram pouco suaves. Aliás posso dizer que em poucos dias se concentraram as quatro estações do ano: esteve muito sol, calor, frio e chuva. Só escapou a neve… Na véspera de partir tive uma surpresa: um telefonema obrigava-me a regressar mais cedo e os 5 dias inicialmente previstos passaram a 4.
Não me arrependi. A concentração no tempo valorizou o percurso em experiência vivida, leia-se aventura. Na jornada em que percorri duas etapas fi-lo parcialmente de noite e houve um momento em que me deparei com um ponto de luz envolvido em música clássica. Para quê a surpresa? A aproximação evidenciou um dinâmico aviário no meio de nenhures em que os frangos se alimentavam ao som de Mozart. Não parei para saber se também seriam apreciadores de Bach ou Prokofiev.
Surpresas e desafios
A primeira grande surpresa foi o prazer da marcha solitária sem amparos. Levei um pequeníssimo rádio com auriculares mas nunca senti necessidade em o ligar. Bastavam-me as oportunidades proporcionadas pela aventura.
Sentia-me confortável na Natureza, na busca da sinalização, nos encontros pontuais com residentes ou com algum peregrino que cruzasse em sentido inverso. Fora isso, conduzia-me pelos pensamentos. Se me perguntassem quais não saberia dizê-lo, nem no próprio dia, como aconteceu nas tertúlias dos albergues. Talvez não fossem verdadeiros pensamentos. Alguém me disse que este é o melhor yoga.
Outra surpresa foi a ausência de cansaço. Caminhar muitas horas seguidas, quase sem pausas, supunha um final de dia de rastos. Nunca aconteceu. Quando chegava ao albergue sentia-me fresca. Construí a minha teoria: não ficava cansada porque era eu quem marcava o ritmo e não me orientava por nenhum horário.
O desafio é simples: chegar ao destino.
A gestão do medo, esse sim, é o grande desafio para quem caminha só. Não há que disfarçar.
Tive-o antes da partida e esteve sempre presente no Caminho. Vivi dois momentos difíceis.
O primeiro aconteceu quando senti na nuca a respiração de dois grandes mastins que, empoleirados num muro por cima de mim, me sondavam com o focinho. Nessa altura, percebi que de pouco valeriam, caso corresse verdadeiro perigo, as minhas duas armas: um canivete suíço e um telemóvel… Este, “desembainhei” no outro momento difícil… Mas essa estória fica para outra altura…
No final, a evidência que é uma lição: o Caminho é também o encontro com o inesperado e há que integrá-lo!
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PARA LÁ DO CAMINHO
Páscoa de 2010. Estou no Caminho del Salvador, algures entre León e Oviedo. Olho à minha volta e procuro alguém. Não vejo vivalma. Só as montanhas, o vento, a neve e, aqui e ali um animal que foge à minha passagem. A minha companhia são os meus pensamentos. A banda sonora é o som da minha respiração, do bastão a bater numa pedra do caminho, do clique do botão da máquina fotográfica que regista um momento que se deseja ser eterno. O sentimento? Felicidade, plenitude, harmonia, paz interior.
Ao fundo vejo um povoado. As chaminés deitam fumo e quando me aproximo sinto aquele cheiro inconfundível a lenha queimada. No pasto, uma manada com bezerros aproxima-se. Por entre eles surge um cão pastor. Para ele não há Sexta-Feira Santa, todos os dias são dias de trabalho.
Atravesso a aldeia, vejo carros novos. São os filhos que regressam das cidades e vêm passar a quadra com os pais, recordar os sabores que faziam parte do seu quotidiano antes de serem absorvidos pela urbe, e purificar o corpo com aquele ar frio.
Os velhos não conseguem disfarçar a alegria. Fala-se com eles e os olhos brilham por sentir que alguém gosta da bica da sua fonte onde sai a água do degelo, das pedras dos seus “panaderos” (tipo de espigueiro com mais de 4 pés), ou simplesmente porque perde (ou ganha) tempo falando com eles sobre os castanheiros do caminho.
Possivelmente nem se apercebem o quanto nos aquecem a alma, o quanto nos ensinam, o quanto lhes devemos por se manterem firmes naquela vida dura. Sem eles a paisagem fica sem sentido, sem vida.
Continuo encosta acima, em direcção à neblina. Recomeça a nevar, mas ao invés de ser desagradável, dá-nos uma inebriante sensação de bem-estar, de aventura. É o que dá viver à beira-mar; a simples diferença da água cair sob a forma sólida torna algo aborrecido na melhor das experiências.
Quando chego, espera-me um albergue quentinho, o sorriso sincero da hospitaleira e, apesar do cansaço, uma enorme vontade de registar todas as memórias no diário de viagem.
Mas não há caderno onde se possa descrever tudo o que se viveu, nem palavras para explicar o que apenas se pode sentir.
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A MAGIA DO CAMINHO
Há um ano estava eu a percorrer o Caminho Francês de Santiago. O que leva alguém a percorrer um longo e solitário percurso de 800 kms? O que se encontra no Caminho? Que mensagem se traz no regresso? O Caminho é um apelo a quem se encontra disponível para um projecto de viagem, física e espiritual. Não pode ser e não é, uma aventura, um passatempo ou uma prova de resistência física.
O Caminho é uma passagem onde cada um tem de descobrir o significado da sua viagem, ao longo de percursos solitários, diante de majestosas igrejas e humildes capelas, na magia comovente dos cânticos gregorianos, no ruído do vento, nas formas fantásmicas das nuvens e nas estrelas que iluminam tantas noites deste fascinante percurso. Só se encontra o que se procura de coração sincero e, a cada passo, se constata que a verdadeira descoberta é aquela que se encontra dentro de cada um.
O Caminho é percorrido pelas sombras de milhões de peregrinos que passaram, viveram e morreram neste percurso sagrado e milenar. As inúmeras lápides são outros tantos pontos de paragem para essas sombras. Sentimo-las como presença amiga, como os companheiros de jornada, que nos surgem repentinamente, vindos não se sabe de onde, e nos acompanham longos quilómetros para desaparecer de novo.
Outro aspecto fascinante do Caminho de Santiago é o encontro com a diversidade de peregrinos de terras e culturas tão diferentes. Num mesmo dia encontrei peregrinos vindos de locais tão longínquos e díspares como a Tasmânia, África do Sul, Japão, Índia e Chile. Todos unidos na magia do percurso, na constante demanda interior do ser, na descoberta da identidade do Outro e da solidariedade, da simplicidade e no reconhecimento da peregrinação como uma passagem para outra dimensão do real.
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FAZER O CAMINHO CANSA O CORPO… MAS DESCANSA A MENTE!
Às 7 e meia da manhã, do dia 3 de Junho de 2010, em Valença do Minho começou a nossa jornada pelo Caminho Português que nos levou até Santiago de Compostela. Nenhum de nós sabia muito bem o que ia encontrar, mas todos íamos em busca de uns dias de verdadeiro companheirismo e espírito de grupo. Foi sem dúvida o que aconteceu, adicionado a uma quota parte de sacrifício… cada um fez o Caminho pelos seus próprios motivos… mas na sua essência todos queríamos desafiar os nossos limites.
Pelo caminho encontrámos vários obstáculos, desde uma recta infernal, de mais de 5 km em asfalto ardente que parecia não ter fim, até subidas vertiginosas, que teimavam em crescer à medida que os quilómetros passavam… Foi um caminho de suor e lágrimas, com dores crescentes a cada metro que passava, mas também de muitas gargalhadas, de muita alegria e de muita amizade.
Do caminho tenho a dizer, que todos os meus passos foram aprendizagens: passei a respeitar ainda mais a Natureza, pois os caminhos são recheados de beleza (riachos límpidos, árvores frondosas, cascatas deslumbrantes); a criticar as construções massivas que nos fazem desviar do nosso Caminho, obrigando-nos a percorrer quilómetros de asfalto (quilómetros que no caminho, não são contabilizados e que nos levaram a percorrer mais 30km do que o assinalado); a acreditar na boa essência dos seres humanos, pois muitos foram os que pelo caminho nos incentivaram a não desistir e essencialmente a valorizar os que comigo o percorreram (sem esquecer quem ficou no apoio móvel e nos alentou quando queríamos desistir), pois sem eles não teria chegado ao fim. Foi o apoio incondicional de todos que nos fez atingir o nosso objectivo em 2 dias e meio – 132km até à chegada.
Muito poderia escrever, pois é repleto de recantos únicos… mas a verdade é que o Caminho não se descreve, sente-se… tem de ser vivido!
Eu, bem…eu só tenho a dizer: façam o Caminho, pois cansa o Corpo… mas descansa a Mente!
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